Quem conhece fogão à lenha? Hoje em dia, pouquíssimas pessoas sabem da existência dele. O avanço das tecnologias obsoletisaram o pobre coitado. Logo ele, senhor das mágicas do sabor. Não existe feijão mais gostoso do que o feito no fogão de lenha. Ah ! Obsoletisaram também a cozinheira. Antes, ela usava o seu vestido caseiro e cobria a cabeça com um pano branco, geralmente de saco de farinha. Agora, as cozinheiras são "produzidas" com roupas adequadas, vestidos coloridos, toucas, luvas, e sei lá mais o quê. Mas a coisa mais fantástica produzida pelo fogão de lenha, é a cozinha. Quase sempre fica toda chamuscada pela fumaça que ele faz; não adianta fazer chaminé e tentar livrar-se dela. O telhado, ah! O telhado é a maior obra feita pelo fogão de lenha. O picumã forma capuchos dependurados no telhado e fica parecendo um enfeite, mas não é! É que a fumaça se junta com as teias de aranha e forma aquelas tochas pretas, agarradas nos caibros e ripas, e as aranhas caem fora! Mas ninguém sabe do pior: quando a família resolve "passar o rodo" nas traquinagens do fogão de lenha, sabe quem paga o pato? Os meninos. Geralmente, os meninos. Na falta deles, serve uma menina. Mas na maioria das vezes, sobra é pra eles. É só pegar a vassoura, por o bonê na cabeça e varrer o telhado da cozinha, tirar todo o picumã, depois passar barro branco no fogão, pra ele ficar "alvinho!", esfregar barro branco nas paredes, de cima a baixo, bem passadinho, pra elas ficarem "alvinhas!", e, para arrematar, passar barro branco no chão, desde os cantinhos até à porta de saída, pra ele ficar "alvinho!", fechar a porta e sair. Umas duas horas depois, pode entrar que está tudo sequinho, lindo, renovado, só para glória da cozinheira!
Mas o fogão de lenha apronta umas e outras com a gente: em 1986 eu fui vender livros no Encontro Anual da SBPC - Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência, em Curitiba - Pr. O encontro findou num sábado, aprontei tudo para voltar pra casa, mas só consegui passagem para a segunda-feira. Como tinha o domingo no meio, fiquei pensando no que fazer. Aí, um grupo de amigos, a maioria livreiros, queria conhecer Morretes, cidade litorânea e portuária cheia de estórias. Diziam que lá tinha surpresas culinárias. Puáia, eu não vim aqui pra comer! Objetei-lhes. Então vamos andar! Respondeu-me o Professor Moacy Cirne. Entramos todos nos carros e largamos. A região é um complexo de serras, tipo Petrópolis, e fomos descendo. Curvas após curvas, até chegarmos a uma baixada, quase entre florestas. Lá longe, avistava-se omar. Vez por outra, apareciam macacos nas árvores, jacus, muita juriti, e, derepente, um tatu cruzou a estrada e quase provoca um engavetamento de carros! Mas pra nossa sorte, não aconteceu nada.
Chegamos ao pé da serra, um local com poucas casas, a maioria tipo "fazenda", e em algumas, placas com a palavra "PENSÃO" gravada em tábuas anunciando um prato chamado "barreado". Paramos em uma bem rústica, onde uma cozinheira - senhora branca, esguia, alta - mexia um panelão de ferro com uma colher de pau imensa, sobre um fogão de lenha quase redondo, feito para aquele tipo de panela. Descemos dos carros, parecendo uma "tropa", seguindo na direção da mulher e alguém perguntando "tem barreado?"; " tá quase pronto!" foi a resposta da dona. O local era cheio de mesões compridos, bancos, algumas cadeiras rústicas bem antigas, chão de terra, um canavial ao redor, casa quase toda de madeira, cachorros, porcos, galinhas, horta... Me senti em casa, no sítio do meu pai. Aproximei-me da "Dona!" falando baixo e lentamente, perguntei-lhe se tinha algo pra gente molhar a palavra, e, sem parar de mexer a colher de pau imensa, ela mandou a gente se servir no freezer, que tinha cerveja e, se quisesse algo mais, podia pegar na estante, que ficava ao longo da parede. O Professor Moacy Cirne foi o primeiro. Atacou o freezer de cerveja. Pegou um "loura" e se esticou todo numa cadeirona de vime com a garrafa numa mão e a caneca de alumínio na outra. Nesse momento, eu brinquei com ele, falando que para o "Pantaleão", personagem muito popular à época, só faltava o tapa-olho. Logo depois, a Dona veio avisar que já estava pronto o barreado e se quiséssemos, ela podia servir. Ah, nós vimos aqui por isso! Disse a Lurdinha, da geografia da Uff. A mulher espalhou pratos de alumínio e talheres sobre as mesas e a comilança começou. O troço era gostoso demais, e, como eu tava com uma fome dos diabos, comi dois pratos de barreado. Fiquei tão cansado, que fui deitar-me sobre um banco, pra fazer a sesta. E, sinceramente, eu nunca comi algo tão gostoso na minha vida de mineiro, caipirão vindo ládas gerais.
Hoje, pensando no assunto, sugerido por um amigo, fui procurar a receita num livro fantástico, chamado Fogão de Lenha, de autoria da irmã do Frei Beto, a Maria Stella Libânio Christo, da Editora Vozes, que segue comigo desde os tempos em que conheci minha mulher, a Rose e devido ela gostar muito de receitas, pensei na culinária mineira e comprei esse livro. Ele reúne toda a tradicional cozinha mineira, que aliada à tradicional cozinha nordestina, através da esposa, o que eu quero mais? Não encontrei receita de barreado nele, por se tratar de um prato da culinária paranaense, mas eu compararia o BARREADO a uma feijoada, porém sem aqueles temperos regionais. Experimente !
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