-Candido Portinari -
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Na casa do meu pai, aos domingos e dias santos, era perna pro ar que ninguém é de ferro! Mas só pra ele, que me mandava arrear seu melhor cavalo e cascava pra cidade, tomar umas e outras, até se lambuzar de baton com as raparigas, pra desgraça de minha mãe. Nós, a criançada, três homens e três mulheres, só saíamos acompanhados de mamãe. Nunca fomos a lugar algum levados por papai. É como se os filhos fossem só dela e todos, vassalos dele, que lhe deviam alguma coisa impagável, o que se tornava uma subserviência eterna, distribuída em diversas funções, como na escravidão, quando os escravos são divididos em ofícios e cada um tem uma responsabilidade. Eu, seria um escravo da pecuária, cuidando do seu gado, dos seus porcos de engorda e cria, da sua criação de galinha, e ainda com a responsabilidade de dar ordens a empregados; seria um escravo-gerente?
Bom, meus irmãos tinham funções mais suaves. Talvez por serem mais novos. Mas não entendo por quê eles tinham mais privilégios do que eu. Por exemplo, uma vez por ano, papai comprava roupa nova para todo mundo; uma vez por ano! Mas todos eles, sem exceção, ganhavam alguma coisa a mais do que eu. Não sei por quê e vou morrer sem saber nem entender. Tudo pra eles tinha de ser melhor do que pra mim e isso levou-me a chorar escondido várias vezes, a ponto de gerar em mim a dúvida da sua paternidade e, soluçando, perguntar a minha mãe se ele era meu pai mesmo. Sua resposta deixou gelado: Já pensou se ele souber disso?! Ameaçou-me ela. E, do meu ponto de vista, com razão, pois era eu quem cuidava de tudo! Desde o recolhimento de animais recem-nascidos, aplicação de remédios, vacinas e rações, em animais com berne ou feridos, eram tarefas minhas. Cortar lenha e estocá-la, era comigo. Pôr água dentro de casa e nos cochos dos animais, era comigo. Socar arroz, moer café, moer milho pra fazer fubá, ou canjiquinha, eram tarefas minhas. À criançada, segundo ele, cabia varrer o terreiro, amontoar as folhas das várias árvores ao redor de casa e queimá-las, recolher os ovos no galinheiro e guardar na dispensa, tomar conta da pintaiada pra não se perder das galinhas-mães, soltar e pastorear leitões, depois recolhê-los aos respectivos chiqueiros pra mamar e dormir. Feito isso, era brincar. Um dos meus maiores prejuízos com isso tudo e que considero o pior de todos é que não conheço nenhuma brincadeira infantil. Nunca brinquei uma festa junina na minha infância, por falta de tempo, pois "EU TINHA O QUE FAZER", segundo meu pai.
Mas, apesar disso tudo, eu tirei proveito. O que eu sei, foi resultado dessa situação: Eu aprendi a nunca me acomodar em profissões.Sempre busquei aprender diversas coisas que pudessem ajudar-me. Uma delas, foi fazer amizade. Amizades sempre voltadas para o que me interessava. Interesseiro, eu? Não! Simplesmente preciso me defender, uma vez que nunca tive quem fizesse isso por mim. Exemplo: um empregado de meu pai ensinou-me os segredos do tiro. O primeiro deles, é segurar a arma com as duas mãos, sempre com um pé atrás do outro. O segundo, é prender a respiração na hora de atirar, para impedir a tremura das mãos. Daí, quando um dia, eu saí pra caçar com meu pai e ele viu eu derrubar um pato de lagoa em pleno voo, perguntou, sobressaltado: "Onde cê aprendeu isso?!". Expliquei-lhe que tinha nascido sabendo e por isso, sempre voltava pra casa com um fiada de caças na vara. E nunca mais falamos no assunto.
Porém, quando eu completei quinze anos, tomei a decisão de sair de casa. Todo mundo riu de mim. Todos, até minha mãe, me ironizavam, debochando do meu raquitismo, que com este corpo, eu nunca arrumaria trabalha nem na zona, e que tinha que ficar de rabinho entre as pernas pra meu pai não me expulsar. Mas, como diz o ditado: a justiça tarda, mas não falta. No meado de junho de 1969, meu tio Sebastião Cabral, que morava no Rio, foi visitar a família. Ao chegar lá em casa, convidei-o para ver a minha porca, com doze leitãozinhos, como álibi para explicar-lhe meus planos. E bastou demonstrar que éramos escravos do nosso próprio pai pra ele comprar o barulho e assumir a tarefa de comunicar a meu pai que o seu "braço direito" vai pro Rio, se virar por sua conta e risco. Assim, no dia seguinte, eu saía da casa paterna, sentindo a sensação de estar deixando o cativeiro, ganhando o mundo que eu conhecia de ouvir estórias e noticiário de rádio. Foi uma choradeira que eu nunca tinha visto, mas acho que não pela minha partida, e sim pela perca do provedor involuntário das satisfações da família. Meu pai se despediu de mim, oferecendo-me as costas da mão direita para eu beijar e nem uma palavra. Mas acho que sei por quê, pois ele estava perdendo TUDO, uma vez que quem provia TUDO era eu. Ele vivia pra negociar gado, cavalos e passarinhos, além de dançar nas catiras do sertão como convidado de honra, ostentando linho branco, bota vernizada e chapéu panamá.
Eu parti à noitinha para Governador Valadares, levando comigo uma malinha de papelão, presente do meu tio "Servino", irmão de minha mãe, com duas mudas de roupa, constituidas de duas camisas de algodão brancas, usadas para ir à missa aos domingos e duas "calças curtas" de brim azul tipo jeens. Chegamos ao Rio em 16 de junho de 1969, um sábado, às seis horas da manhã. Fazia um frio de rachar, mas pra mim, isso era pinto! Pra quem se levantava às quatro da manhã pra juntar vacas e arrear burro na carroça, depois levar todo o leite do sítio até à rodovia e entregá-lo ao caminhoneiro, que o levaria ao laticínio, enquanto eu voltava e ia cuidar da criação, era mamão com açúcar ! Chegamos à casa do meu tio, no Catumbi, por volta das sete da manhã, com um saco de pão, manteiga, ovos, e um pernil, comprado no pé da favela da Mineira. Foi uma festa de arromba a minha chegada. Fui conhecer a primaiada e outros membros da família que já moravam aqui no Rio, descansei o sábado TODO, coisa que eu nunca tinha feito, e, no domingo, meus primos levaram-me à Praia do Flamengo, que eu achei a coisa mais fantástica do mundo, fui conhecer água salgada,algo que eu nunca imaginara, até que uma onda levou meu calção e eu tive de ficar dentro d'água enquanto meu primo Sadi nadava pra resgatá-lo. Foi hilário! Voltamos da praia, tomei um banho de chuveiro (!), almocei e fui dormir, pois não me aguentava em pé de tanto cansaço.
Eu sei que foi um choque, pois em apenas um ano, eu fui morar sozinho pagando aluguel, fiz uma caderneta de poupança considerável e comprei um lote em Nova Iguaçu, quase à vista, mais devido ao baixo valor da terra naquela região em 1970. Porém, quando eu estirei a rede na varanda da casa do meu pai e me deitei, quem se deitava não era eu, era o menino que nunca teve uma hora de repouso na casa do seu pai. Na hora da janta, ele veio acordar-me, passando sua mão direita em minha cabeça, o que causou-me um susto, pois eu não conhecia esse carinho, pelo menos da sua parte. Era costume do meu avô paterno juntar vaca comigo e emparelharmos os cavalos enquanto ele punha sua mão em minha cabeça, dizendo pra eu ter paciência. Papai perguntou-me se eu descansara bastante e lhe respondi, já prevenindo-o, que num domingo chuvoso, à boca da noite, quando não vale a pena sair em busca de diversão, como diz o senhor, "Hoje é meu dia de comer o que ganhei atrás!". E nunca mais trabalhei para meu pai.
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